Chico Xavier mostra que palavras podem mentir
Nada como dizer "não" só dizendo "sim". Línguas latinas têm como um grande erro colocar "algum" e "nenhum" como sinônimos, sem perceber o quanto palavras podem ser armadilhas.
O deturpador do Espiritismo, Francisco Cândido Xavier, o Chico Xavier, tem uma obra que é uma afronta vergonhosa aos ensinamentos originais trazidos pela obra pioneira de Allan Kardec.
Mas tudo isso se deixa passar pela desculpa da "liberdade religiosa", que faz do traidor doutrinário, pretensamente, seu "mais fiel e respeitoso discípulo".
Ah, como o balé das palavras transforma veneno em açúcar, que desce macio na alma, antes de seu golpe fatal!
Mesmo as forças progressistas não percebem o quanto Chico Xavier, reacionário de carteirinha por toda a sua vida, nunca foi a favor de suas causas.
Mas o ardiloso Chico era capaz de ser reacionário, se passando por progressista. Tudo num habilidoso jogo de palavras e se aproveitando da rendição fácil dos brasileiros pelas paixões religiosas.
Poucos sabem, mas as paixões religiosas são fontes de tentações ainda mais traiçoeiras, sendo abismos que fingem ser portais do Paraíso celestial.
Vejamos alguns exemplos de como Chico Xavier sabia jogar com as palavras, mesmo em obras atribuídas a outros autores mortos.
ALMYR GUIMARÃES Chico, tem aqui uma pergunta de dona Maria Lúcia Silva Gomes. Pergunta: "Como se explica o homossexualismo e a perturbação no comportamento sexual à luz da doutrina espírita?"
CHICO XAVIER Temos tido alguns entendimentos com Espíritos amigos e notadamente com Emmanuel a esse respeito.
O homossexualismo, tanto quanto a bissexualidade ou bissexualismo como a assexualidade são condições da alma humana. Não devem ser interpretados como fenômenos espantosos, como fenômenos atacáveis pelo ridículo da humanidade. Tanto quanto acontece com a maioria que desfruta de uma sexualidade dita normal, aqueles que são portadores de sentimentos de homossexualidade ou bissexualidade são dignos do nosso maior respeito. E acreditamos que o comportamento sexual na humanidade sofrerá de futuro revisões muito grandes, porque nós vamos catalogar, do ponto de vista de ciência, todos aqueles que podem cooperar na procriação e todos aqueles que estão numa condição de esterilidade.
A criatura humana não é só chamada à fecundidade física, mas também à fecundidade espiritual. Quando geramos filhos, através da sexualidade dita normal, somos chamados também à fecundidade espiritual, transmitindo aos nossos filhos os valores do espírito de que sejamos portadores.
Não nos referimos aqui aos problemas do desequilíbrio nem aos problemas da chamada viciação nas relações humanas. Estamos nos referindo a condições da personalidade humana reencarnada, muitas vezes portadora de conflitos que dizem respeito seja à sua condição de alma em prova ou à sua condição de criatura em tarefa específica.
De modo que o assunto merecerá muito estudo e poderemos voltar a ele em qualquer tempo que formos convidados Porque nós temos um problema em matéria de sexo na humanidade, que precisaríamos considerar com bastante segurança e respeito recíproco.
Se as potências do homem na visão, na audição, nos recursos imensos do cérebro nos recursos gustativos, nas mãos, na tatilidade com que as mãos executam trabalhos manuais, nos pés; se todas essas potências foram dadas ao homem para a educação, para o rendimento no bem, isto é, potências consagradas ao bem e à luz em nome de Deus, seria o sexo, em suas várias manifestações, sentenciado às trevas?
(ENTREVISTA DO PROGRAMA PINGA-FOGO, APRESENTADO POR ALMYR GUIMARÃES, TV TUPI DE SÃO PAULO, 28 DE JULHO DE 1971)
A postura leva a crer que se trata de uma posição supostamente pró-LGBTT (como se chama o homossexualismo hoje), o que faz o leitor apressado correr para o Adobe Photoshop e gravar a primeira foto de Chico Xavier que encontrar na frente e editar um arco-íris em cima.
O arco-íris sobre uma imagem originalmente em preto-e-branco indica uma simbologia pró-LGBTT nas redes sociais.
Mas Chico Xavier manifestou uma posição homofóbica (apesar do jeito efeminado de suas poses e maneiras de falar), atribuindo "confusão mental" aos homossexuais, através da declaração sutil dos "conflitos da alma na reencarnação".
Isso indica que Chico Xavier, embora aparentemente educado, defendia a ideia da "cura gay", bem condizente à sua formação católica medieval, dissimulada por palavras tão habilidosamente espertas.
Vamos a outro exemplo:
"Como devemos encarar o comunismo cristão?
O comunismo em suas expressões de democracia cristã está ainda longe de ser integralmente compreendido como orientador de vossas forças político-administrativas.
Somente serão entendidas as suas concepções adiantadas, à luz dos exemplos do Cristo, quando reconhecerdes que o Evangelho não quer transformar os ricos em pobres e sim converter os indigentes em ricos do mundo, fazendo desabrochar em cada indivíduo a concepção dos seus deveres sagrados, em face dos problemas grandiosos da vida.
Comunismo ou socialismo cristão não pode ser a anarquia e a degradação que observais algumas vezes em seu nome, significando, acima de tudo, a elevação de todos, dentro da harmonia soberana e perfeita.
Quando o homem praticar a fraternidade, não como obrigação imposta pelas justas conveniências, mas como lei espontânea e divina do seu coração, reconhecendo-se apenas como usufrutuário do mundo em que vive, convertendo as bênçãos da natureza, que são as bênçãos de Deus, em pão para a boca e luz para o espírito, as forças políticas que dirigem os povos nortear-se-ão sem guerras e sem ambições, obedecendo aos códigos de solidariedade comum.
Semelhante estado de coisas, porém, nunca será imposto por armas ou decretos humanos. Representará o amadurecimento da consciência coletiva na compreensão dos legítimos deveres da fraternidade e somente surgirá, no mundo, por efeito do conhecimento e da educação de cada indivíduo".
(FRANCISCO CÂNDIDO XAVIER, ATRIBUÍDO AO ESPÍRITO EMMANUEL - COLETÂNEA DO ALÉM (ATRIBUÍDO A VÁRIOS AUTORES), 1945).
O texto é absolutamente traiçoeiro. Lido às pressas, pode-se ter a falsa impressão de que Emmanuel e Chico Xavier são "comunistas" e defendem o "mais puro esquerdismo".
Daí para os tolos das esquerdas acreditarem que Chico Xavier apoiaria Lula, Dilma e Fernando Haddad é um pulo. Ainda mais se lembrarmos que Haddad era professor, a crendice funcionaria direitinho.
Mas a verdade é que, no texto, Emmanuel enfatiza demais o conceito religioso de "fraternidade" e "educação", neste trecho cheio de palavras abstratas.
Antes de mais nada, devemos admitir que o texto de Emmanuel não é direto, mas prolixo e cheio de ideias vagas e abstratas, que nada trazem de concreto nem de direto.
Devemos interpretá-lo com muito cuidado e observando não só o contexto, mas o que realmente pensava Emmanuel, que em outros textos expressava um reacionarismo para lá de explícito e em níveis hoje comparáveis ao bolsonarismo.
As ideias de "fraternidade" e "educação" são herdadas do Catolicismo jesuíta português, de origem medieval, trazida em parte pelo próprio Emmanuel (padre Manuel da Nóbrega) e também presente na formação religiosa de Chico Xavier.
Portanto, é um Catolicismo de moldes medievais, nos quais a ideia de "fraternidade" esconde conceitos que envolvem rígida e antiquada hierarquia e valores ligados à submissão humana à ordem estabelecida.
Em outros textos, Emmanuel deixa bem claro que não quer ver pessoas questionando as coisas. Ele chega a falar em "tóxico do intelectualismo", que sutilmente vai contra até mesmo os ensinamentos de Kardec, que estimulava o aprofundamento do debate público.
Kardec pedia para os outros o questionarem, desde que sob o âmbito da lógica e do bom senso.
Já a obra de Chico Xavier é o oposto disso, sempre condenando o senso crítico e só autorizando o desenvolvimento do Conhecimento nos limites de suas práticas instrumentais, como estudar vacinas para doenças e, dentro de limites conservadores, analisar fatos históricos e problemas científicos.
A ideia de "educação", neste sentido, é descrita por Emmanuel vagamente, mas analisando sua obra, ela corresponde aos valores defendidos explicitamente pela Escola Sem Partido.
Temos que tomar cuidado, porque o texto sobre o Comunismo é hipócrita, criando uma retórica de "união da coletividade" que engana os esquerdistas brasileiros e até ateus desavisados.
Trata-se de um texto do tipo "a esquerda que a direita quer" e Emmanuel (ou Chico Xavier "ele mesmo") ao descrever a "anarquia" e a "degradação" como aspectos negativos do esquerdismo, está falando, na verdade, nos protestos movidos pelas classes trabalhadoras, camponesas e sem-teto.
Chico Xavier revelou o tom dessa visão quando deu entrevista ao programa Pinga Fogo, da TV Tupi, em 1971. Foi explícito em suas declarações, dadas por ele mesmo para um público gigantesco que ia muito além da plateia e dos telespectadores da época.
Afinal, a entrevista foi preservada na posteridade graças aos vídeos reproduzidos no YouTube. Vejamos o anti-comunismo enérgico de Chico Xavier:
"Temos que convir (...) que os militares, em 3l de março de 1964, só deram o golpe para tomar o Poder Federal, atendendo a um apelo veemente, dramático, das famílias católicas brasileiras, tendo à frente os cardeais e os bispos. E, na verdade, com justa razão, ou melhor, com grande dose de patriotismo, porque o governo do Presidente João Goulart, de tendência francamente esquerdista, deixou instalar-se aqui no Brasil um verdadeiro caos, não só nos campos, onde as ligas camponesas (os “Sem Terra” de hoje), desrespeitando o direito sagrado da propriedade, invadiam e tomavam à força as fazendas do interior. Da mesma forma os “sem teto”, apoderavam-se das casas e edifícios desocupados, como, infelizmente, ainda se faz hoje em dia, e ali ficavam, por tempo indeterminado. Faziam isto dirigidos e orientados pelos comunistas, que, tomando como exemplo a União Soviética e o Regime Cubano de Fidel Castro, queriam também criar aqui em nossa pátria a República do Proletariado, formada pelos trabalhadores dos campos e das cidades. Diga-se, a bem da justiça, que os militares só recorreram à violência, ao AI-5, em represália aos atos de violência dos opositores do regime democrático capitalista, que viviam provocando atos de vandalismo, seqüestros de embaixadores e mortes de inocentes".
(ENTREVISTA DO PROGRAMA PINGA-FOGO, APRESENTADO POR ALMYR GUIMARÃES, TV TUPI DE SÃO PAULO, 28 DE JULHO DE 1971)
Nesta ocasião, Chico Xavier foi verdadeiro e sem as dissimulações habituais. Ele não fez isso para agradar a ditadura militar, porque ele poderia, se quisesse, dizer que está "muito entristecido" com os rumos do governo militar.
Mas não. Ele demonstrou seu anti-esquerdismo enérgico e ferrenho, e acreditamos que Emmanuel, existindo ou não, estaria associado explícita ou simbolicamente a tais ideias.
Aquilo foi dado em tom de desabafo, muito diferente das dissimulações e do discurso obscuro que faz Chico Xavier estar falsamente associado a causas progressistas, por meio de ideias vagas, soltas e associadas a interpretações "pró-esquerdistas" vindas somente do pensamento desejoso.
Temos que tomar cuidado com palavras, principalmente numa doutrina obscurantista que se tornou o Espiritismo brasileiro, nas mãos do medieval Chico Xavier.
Esperto como o protótipo do "mineiro que come quieto", Chico Xavier era capaz de dizer "não" dizendo apenas "sim", no aparato de palavras prolixas, do discurso rebuscado, já alertado como perigo pela literatura kardeciana original.
Palavras podem mentir e enganar, e quantas visões contrárias podem estar escondidas num discurso mirabolante na qual seu expositor finja adotar posições favoráveis, quando, por baixo dos panos, pela análise atenta de sua retórica, notam-se sutis posturas de aversão.
No caso do texto do "comunismo", Emmanuel mas fez cobranças do que elogios. E se comportou como qualquer articulista de Veja, que também "deseja um comunismo melhor", submetido aos paradigmas morais da direita.
Além do mais, as esquerdas costumam ser mais claras na exposição de textos e ideias, diferente de Emmanuel que produziu um texto cheio de ideias vagas que sugerem interpretação dúbia, como "fraternidade" e "educação", ou "anarquia" e "degradação".
Essas ideias vagas, no entanto, escondem, pelo contexto e pela natureza das ideias expressar por Emmanuel em outros textos, abordagens tipicamente direitistas.
Portanto, não podemos nos iludir com a aparência dos textos, para não sermos enganados atribuindo a eles uma postura falsamente solidária, quando ela expressa uma sutil, porém profunda, aversão. As palavras podem mentir.
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