Mais grave que a deturpação do Espiritismo, é a ignorância desse problema



O Espiritismo brasileiro é deturpado e se distanciou das lições originais do Espiritismo francês.

As pessoas, no Brasil, não só estão desinformadas, mas também ficam indiferentes a esse problema.

Acham que o Espiritismo pode ser deturpado, desde que transmita "mensagens positivas de conteúdo cristão".

Acreditam que, se o veneno tem um sabor delicioso, ele é "saudável" e ninguém dá bola para problemas.

Isso é muito grave. Textos que falam da deturpação do Espiritismo no Brasil deveriam estar entre os mais lidos na Internet.

Aqui quem se diz espírita brinca com as ideias kardecianas e comete traições a todo gosto, criando ideias fantasiosas sobre um mundo espiritual concebido sem o menor fundamento científico.

E também ideias moralistas retrógradas, muitas trazidas da medieval Teologia do Sofrimento, são exaltadas no ideário do Espiritismo brasileiro.

Para piorar, até esquerdistas e ateus caem com muita facilidade no "canto de sereia" de "médiuns" como Francisco Cândido Xavier, o Chico Xavier.

Nem eles conseguem enxergar tais armadilhas, e caem muito fácil nesse ardil mascarado por paisagens floridas e celestiais.

Todo um aparato de beleza, de poesia, mascara aberrantes violações aos ensinamentos espíritas originais. E muita gente aceita tudo, numa boa.

Num país onde 62% dos brasileiros acreditam em fake news, o precedente da literatura fake de Chico Xavier tem uma preocupante adesão até mesmo da Justiça, que legitima a fraude.

As "psicografias" que levam, por exemplo, o nome de Humberto de Campos ou Irmão X, são aberrantemente diferentes à obra do autor maranhense.

Na obra original, produzida em vida, Humberto tem escrita ágil, linguagem culta mas acessível, textos bem feitos, prosa quase sempre descontraída e temática laica.

O "espírito Humberto" é outro: escrita pesada, linguagem rebuscada e com vícios gramaticais, textos cansativos para ler, narrativa deprimente e temática igrejista ou de moralismo retrógrado.

Apesar disso, até mesmo palestrantes de esquerda vêm com essa tolice de, evocando o ufanismo perigoso de Brasil, Coração do Mundo, Pátria do Evangelho, cair na asneira de dizer "como disse Humberto de Campos...".

Não, Humberto não se envolveu com um til sequer da obra pretensamente psicografada de Chico Xavier.

Ele se manteve distante. O suposto sonho de 1935, no qual o esperto Chico Xavier alegava que Humberto se destacou da multidão para cumprimentar o "médium" e combinar parceria, foi um blefe usado para permitir a FEB de publicar tão perniciosa apropriação.

Humberto ficaria horrorizado ao saber que muitos acreditam nessa farsa e que até o filho homônimo foi seduzido pelo "canto de sereia" do "médium".

Existem traições póstumas. Irma de Castro Rocha, Meimei, ficou, no mundo espiritual, desapontada e horrorizada quando seu viúvo Arnaldo Rocha tornou-se parceiro de Chico Xavier, até em supostas e risíveis psicofonias do "médium" mineiro que hoje caíram no esquecimento.

O Espiritismo brasileiro virou uma farra irresponsável de fakes de tal forma que surge um "morto da moda" creditado em mensagens farsantes, feitas sem o menor cuidado científico, servindo apenas como marketing religioso (aquele apelo tipo "vamos ser irmãos na paz do Cristo".

Recentemente, Domingos Montagner foi usado em mensagens propagandísticas desse tipo, com o intuito de produzir sensacionalismo em torno de um ator popular que faleceu há pouco.

Mas também tem cientistas europeus como Erich Fromm creditados em mensagens suspeitas que estranhamente são publicadas originalmente em português e com linguagem de youtuber.

Imagine Erich Fromm escrevendo como se fosse Whindersson Nunes. Ou Hannah Arendt escrevendo como se fosse uma Larissa Manoela.

Há uma série de irregularidades, e não podemos usar o pretexto da religiosidade para colocá-las debaixo do tapete.

Não podemos fingir que o que é aberrante, falso e irregular (para não dizer os erros gravíssimos de abordagem histórica, sociológica, geológica etc das obras de Chico Xavier) tem validade porque "escapam de nossa compreensão terrena".

Isso é malandragem. O que nosso raciocínio não aceita porque é fruto da ignorância e da mistificação não pode ser confundido com algo que "tem validade no mundo espiritual".

Não podemos ser imbecis no além-túmulo. Somos animais racionais e, portanto, se algo escapa à lógica e o bom senso, não pode ter validade mesmo quando o dado irregular é feito sob a perspectiva da religião.

Religiões como Catolicismo e Protestantismo até tem suas fantasias. Mas elas são liberdades culturais, têm sua pertinência como imaginação, pois essas religiões não têm a pretensão de parecer intelectualizadas.

Neste caso, o Espiritismo brasileiro se coloca abaixo até das piores religiões evangélicas neopentecostais.

Por pior que seja, o "bispo" Valdomiro Santiago, da Igreja Mundial do Poder de Deus, não tem a pretensão de ser um intelectual como teve Chico Xavier.

O pretenso intelectualismo do Espiritismo brasileiro chega a investir em posturas um tanto incômodas e que não podem ser relativizadas pelo argumento falacioso do pensamento desejoso.

Tida como "doutrina esclarecedora", o Espiritismo brasileiro comete a gafe deplorável de falar em "tóxico do intelectualismo", coisa que nem as esquerdas percebem.

"Tóxico do intelectualismo", tese que arranca aplausos para os idiotas que só querem "ouvir o coração" mas se dizem "esclarecidos e inteligentes", é uma forma de amaldiçoar o senso crítico aprofundado, o questionamento insistente, a busca pela verdade.

Isso coloca Chico Xavier em posição ANTAGÔNICA a Allan Kardec, e elimina boa parte do mérito que o "bondoso médium" possui na sociedade.

Sim, porque sabemos que o pedagogo francês sempre estimulava o questionamento aprofundado e até desagradável, desde que comprometido com a busca da lógica, do bom senso e da aproximação da verdade dos fatos e das ideias.

Kardec é muito famoso por defender que, se há um argumento científico e lógico que contrarie os pensamentos da Codificação, é melhor que se prefira a Ciência em detrimento do Espiritismo.

Sim, ele mesmo admitia ser questionado, ele convidava ao debate, aceitava ser desafiado ao esclarecimento e, de maneira humilde, Kardec buscava esclarecer sempre comprometido com a lógica e do Conhecimento.

Já Chico Xavier, não. Ele causou muita confusão e revolta com literatura fake que claramente destoa dos aspectos pessoais dos autores mortos alegados.

Daí que, além de expressar um moralismo ultraconservador (o mesmo que glorifica Jair Bolsonaro), os apelos de Chico Xavier para "não questionar" e "aceitar tudo em silêncio" visando também salvar a sua pele.

É mais ou menos quando uma ditadura apela para a repressão para evitar que seus esquemas de corrupção sejam denunciados.

Isso é muito aberrante. Mas ninguém questiona. As pessoas estão na sua síndrome de Peter Pan, querem voar com o "Peter Pan" que se tornou Chico Xavier, voando sobre paisagens floridas sob um céu azul ensolarado e de nuvens brancas.

Estamos vendo pessoas prisioneiras de seus instintos e fantasias, escravas de suas emoções extremas.

A fascinação obsessiva, que a literatura kardeciana condenava, encontrou no Brasil marcado pela burrice e desinformação, além da teimosia e tirania, seu terreno mais fértil.

Daí a obsessão em torno de Chico Xavier, daí a obsessão em torno de Jair Bolsonaro.

As pessoas não conseguem compreender e andam consumindo obras fake porque lhes são mais agradáveis, divertidas, impactuantes ou as fazem dormir tranquilas.

Enquanto isso, a realidade brasileira pode ser destruída por conta desse coquetel perigoso de emotividade cega, fascinação, teimosia, irritabilidade, falta de discernimento e outros vícios.

Questionar a deturpação, no Brasil, tem que ter a firmeza aconselhada pelo espírito Erasto, sem que se deixe relativizar pelas paixões religiosas.

Não tem essa de "mas o 'médium' pelo menos era bondoso e ajudou muita gente" porque essa lorota não cola mais. A "caridade" dos "médiuns", Chico Xavier incluído, foi fajuta, porque, pela grandeza com que se supõe deles, o Brasil teria se tornado um país próspero há muito tempo.

Hoje o Brasil caminha para a ruína. E não é por falta de adoração aos "médiuns", mas, antes, pelo excesso dessa idolatria.

Os espíritas autênticos têm que perder o medo. Eles devem prestar atenção no que disse Kardec: "melhor cair um do que cair uma multidão".

Seria melhor que os "médiuns" caíssem do que o povo brasileiro todo. Devemos abrir mão da adoração aos "médiuns", na verdade figuras deploráveis e de tamanho reacionarismo, e buscarmos percepções mais realistas do nosso cotidiano.

Caso contrário, o preço a ser pago por essa emotividade cega movida pelas paixões religiosas e pela fascinação obsessiva será caro demais.

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