Combater a deturpação sem romper com os deturpadores é perigoso
Recentemente, como vimos, os espíritas autênticos, progressistas, lançaram um manifesto contra Jair Bolsonaro.
Em defesa da Justiça e da Paz, os autênticos espíritas se esforçam em evitar que a Doutrina Espírita seja refém de defensores do fascismo.
A ação é muito bem intencionada, bem vinda, saudável e voltada à solidariedade e ao entendimento, mas pode também gerar mal entendidos e riscos.
Afinal, se trata de uma corrente no Espiritismo que vive à margem do chamado "movimento espírita" que prevalece no cenário religioso e na visibilidade oficial aos leigos.
É uma corrente que, embora acolha princípios religiosos, se esforça em manter fidelidade aos ensinamentos originais de Allan Kardec.
Em muitos momentos, essa corrente, uma evolução da corrente "científica" original adaptada a ideias cristãs que não entrem em choque com os postulados kardecianos, acerta, e muito.
Ela aponta distorções de quando a corrente igrejista que domina no Espiritismo existente no Brasil expressa seus interesses, através de dadas obras.
Como, por exemplo, as tentativas de "roustanguizar" as traduções da obra kardeciana de forma a enfiar fantasias igrejeiras que o pedagogo francês nunca defendeu.
Também há condenações como fantasias como "crianças-índigo", importadas de uma farsa ocultista criada para ganhar dinheiro, e que soam discriminatórias quanto à inteligência precocemente adquirida pelas crianças.
Mas o grande erro que pode surgir está na aparente conciliação e misericórdia quanto aos deturpadores.
Nos anos 1970, os espíritas "científicos", denunciando os abusos cometidos pela cúpula da FEB, ignoraram uma grande armadilha.
Uma parte dos "místicos", na qual se incluíam os "regionalistas" que reagiam contra o "federalismo" da FEB, passou a se dizer "solidária" aos "científicos", visando se promover às custas da promessa de recuperação das bases doutrinárias.
Chama-se de "regionalistas" porque incluem federações regionais que não tinham poder de decisão da FEB, cuja cúpula centralizava as decisões do eixo Rio-São Paulo.
Lembremos que dois "médiuns" de maior status no "movimento espírita", Francisco Cândido Xavier, o Chico Xavier, e Divaldo Franco, não eram fluminenses (nem cariocas, se considerarmos a então existência, até 1975, do Estado da Guanabara) nem paulistas, mas mineiro e baiano, respectivamente.
Chico e Divaldo são representantes dos "místicos" e suas obras contém o mais escancarado igrejismo.
Diante da polêmica dos "regionalistas" diante do conflito com os herdeiros de Wantuil, houve o surgimento da farsa que Carlos Imbassahy, o pai, definiu como "a farsa dos kardecistas autênticos".
Nela, uma parcela de "místicos" finge concordar com a necessidade de retomar as bases científicas do Espiritismo francês, discordando dos conceitos roustanguistas a ponto de transformar o nome de J. B. Roustaing em "palavrão" nas lideranças do "movimento espírita" divergentes da FEB.
O alvo do conflito estava no baixo prestígio que os herdeiros de Antônio Wantuil de Freitas, que deixou a FEB em 1970 (decisão anunciada um ano antes) e morreu em 1974, tiveram entre os palestrantes e "médiuns" que não integravam os cargos diretores na federação.
Entre os herdeiros de Wantuil, estava Luciano dos Anjos, que teve a imagem arranhada por denunciar plágios de Divaldo Franco em obras do (já plagiador) Chico Xavier, quase estremecendo as relações dos dois "médiuns" e prejudicando o êxito comercial da FEB.
Com isso, foi como se uma parcela das raposas fosse chamada para reconstruir o galinheiro.
Tudo pareceu lindo: no discurso, decidiu-se pelo perdão, pela misericórdia, pela conciliação e pela união, tida como em nome de Jesus e dos princípios valiosos do Amor e da Fraternidade.
Mas isso ganhou um ingrediente perigoso: Chico e Divaldo sempre foram os maiores deturpadores da Doutrina Espírita e estão ligados a práticas ilícitas como produção de literatura fake e fantasias de caráter místico contrárias à lógica kardeciana.
Entre essas fantasias estão a alegação de um mundo espiritual sem o menor fundamento científico, que se deu a partir dos imponentes cenários, típicos de condomínios de luxo, trazidos por Nosso Lar.
Pior: criou-se um vício no qual a suposta "caridade" dos "médiuns" tornou-se um escudo para relativizar seus erros.
Diz-se que Chico e Divaldo "deturparam a Doutrina", mas inventa-se ressalvas aqui e ali, principalmente pelo clichê de alegar que "eles ajudaram muita gente", suposição dita sem provas e que, por outro lado, não apresentaram resultados expressivos.
Afinal, pela grandeza que se supõe dos "médiuns", o Brasil teria alcançado níveis escandinavos de desenvolvimento social. Não chegamos sequer perto, e, pelo contrário, até regredimos, e olha que os "médiuns" são extremamente adorados e cultuados em excesso.
Fala-se tanto na "caridade" de Chico Xavier mas a sua Uberaba, que o tem como maior personalidade local (nascido em Pedro Leopoldo, ele adotou a cidade do Triângulo Mineiro como moradia nas últimas décadas de vida), nem de longe progrediu.
Pelo contrário: só entre 2000 e 2010 (logo o ano em que se lembrava os 100 anos de nascimento de Chico Xavier), Uberaba despencou 106 posições em Índice de Desenvolvimento Humano, e olha que a cidade mineira nunca foi um primor de civilização e desenvolvimento.
Além do mais, se observarmos bem, essa caridade nunca existiu.
Quem ajudava eram os frequentadores de "casas espíritas", e mesmo assim sob o âmbito do Assistencialismo, marcada por ações paliativas que não fazem os pobres romperem com sua inferioridade social.
A relação é entre o trabalho das formigas e a ostentação e o prestígio das cigarras. As cigarras, por si, nada fazem, mas garantem a adoração fácil e extrema pelo trabalho feito pelas formigas.
Isso não deve ser confundido com mutirão, porque no mutirão quem pede que os outros ajudem também contribui com sua ajuda.
O "médium" é a cigarra que nada tira do seu bolso e dos seus bens para a "caridade".
Mas o "médium" ganha fama pelo trabalho alheio, recebendo as glórias terrenas e a adoração mais extrema pelo trabalho que ele não fez.
Essa é a dura realidade que muitos, tomados da mais pura fascinação obsessiva, ignoram e se recusam a admitir e que, quando aconselhados a isso, ainda se irritam e reagem com rispidez.
Para eles, o que vale é a idolatria do "médium" e, tão preocupados com esse mito da pretensa caridade, chegam a deixar de lado os mais necessitados, porque eles são só um "pequeno detalhe", a "caridade" é só uma desculpa para a adoração cega aos "médiuns".
E é essa armadilha que toma conta de quem combate a deturpação mas não os deturpadores.
A perigosa conciliação, na qual os oportunistas são acolhidos como se fossem aliados, é o que está dificultando os trabalhos de recuperação das bases kardecianas originais.
Primeiro, porque complica os verdadeiros estudos sobre mundo espiritual e contato com os mortos, dando consideração e até legitimidade aos trabalhos preocupantemente irregulares trazidos por Chico Xavier e seus seguidores.
Segundo, porque mesmo a recuperação das bases kardecianas pode ser contaminada pela catolicização, principalmente quando se carrega demais nas referências a Jesus Cristo, Evangelho e fé cristã.
Terceiro, porque, combinando tudo isso, reduz-se o Espiritismo, mesmo sob toda a promessa de recuperação das bases doutrinárias, a uma religião de adoração, com o acolhimento de ideias catolicizadas que permanecem até hoje.
É por isso que a sociedade desconhece o quanto nosso Espiritismo anda muito deturpado, e de maneira mais preocupante que se imagina.
Vende-se gato por lebre, enquanto se pensa que a doutrina original francesa é digna e fielmente adaptada no Brasil.
E aí vemos eventuais incidentes que fazem com que os "científicos" voltassem a reagir, num contexto em que os deturpadores da Doutrina Espírita bajulam espíritas autênticos como José Herculano Pires ou religiosos progressistas em geral, como Dom Paulo Evaristo Arns.
O combate à deturpação, ao se render a essas armadilhas, não conseguiu sua finalidade e o Espiritismo se tornou mais catolicizado do que antes.
Com o agravante de que até os deturpadores que "vaticanizaram" a Doutrina Espírita reprovam, da boca para fora, a própria "vaticanização".
A "conciliação" dos defensores das bases doutrinárias originais aos deturpadores, mesmo marcado pelos mais bem intencionados perdão e solidariedade, causou o resultado oposto. A deturpação se ampliou e se agravou, desta vez sob o rótulo de "recuperação das bases doutrinárias".
Conclui-se, portanto, que, quando se convidou as raposas para reconstruírem o galinheiro destruído, elas fingiram que estavam reconstruindo e até fizeram ações de fachada, mas depois foram tentados a devorar novas galinhas e a causar estragos futuros.
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