Espiritismo brasileiro e moralismo punitivista



O Espiritismo que se conhece no Brasil tem problemas da mais extrema gravidade (gravidade, mesmo, não é um errinho pequeno).

Exalta Allan Kardec, mas segue Jean-Baptiste Roustaing, com o nome deste deturpador posto debaixo do tapete.

Nota-se que o Espiritismo brasileiro é punitivista, moralista, defende a Teologia do Sofrimento.

Em dado momento tenta desmentir suas próprias ideias, com palestras e textos sobre "felicidade", com palestrantes dizendo que "ninguém aqui veio para sofrer".

Enquanto há toda uma pose de pretensa sabedoria, de falsa humildade, de fingida autocrítica, de suposta imponência etc, os espíritas brasileiros só realizam uma coisa: entrar em contradição consigo mesmos.

E aí vemos o caso do moralismo. O Espiritismo brasileiro tenta desmentir que os encarnados estivessem condenados a carmas e fatalismos.

Mas desmentem, afirmando. Desmentem o enunciado, mas afirmam a essência.

Em duas amostras das capas de edições recentes do Correio Espírita, de junho e julho deste ano, nota-se o conteúdo moralista, com ranço de pretensa sabedoria, na qual a herança roustanguista da tese da reencarnação como sentença criminal é evocada.

Notemos o que dizem, respectivamente, as matérias de capa de junho e julho:

"Fatalismo, comportamento e vida - As causas que, geralmente, influem em nossa existência atual estão nas experiências desta reencarnação, na qual nos movimentamos, ou nas pretéritas, que já estabeleceram os IMPOSITIVOS DAS REPARAÇÕES QUE, OBRIGATORIAMENTE, TEREMOS QUE REALIZAR" (grifo nosso).

"Reencarnação, enigmas e dilemas - Todas as nossas lutas, dificuldades, dores, sofrimentos, problemas e obstáculos que encontramos na jornada evolutiva são detalhes normais de todas as reencarnações, pelas quais deveremos passar, e NINGUÉM ESTÁ ISENTO DAS PROVAS QUE ATRAIU PARA SI MESMO" (grifo nosso).

Em ambos os casos, a influência de Jean-Baptiste Roustaing é certeira e indiscutível, em que pese o verniz de "kardecismo autêntico" que mascara o Espiritismo no Brasil.

Roustaing via a reencarnação como um CASTIGO e falava até em punições extremas, como a das reencarnações humanas na forma de vermes, animais ou vegetais.

Se interpretarmos Roustaing para o contexto de hoje, sobraria até reencarnação de humanos falidos em vírus como os da AIDS.

Ou talvez haja reencarnação como algoritmos ("robôs") da Internet para apoiar Jair Bolsonaro, que talvez seja o "cavaleiro da esperança" do Espiritismo brasileiro, depois da decepção com as trapalhadas de Aécio Neves, o homem dos sonhos de Chico Xavier.

Mas essa forma de reencarnação é descartada pelo movimento espírita e o próprio Chico Xavier descartou essa parte quando adaptou Roustaing para a realidade brasileira, nos livros tão amplamente conhecidos.

No entanto, a essência de Roustaing está toda em Chico Xavier e seus seguidores, de tal forma que foi possível deixar Roustaing num canto e fingir que o Espiritismo brasileiro recuperou as bases doutrinárias originais.

Chico Xavier defendia a Teologia do Sofrimento, que já estava presente em Os Quatro Evangelhos de J. B. Roustaing e que havia sido uma corrente das mais sombrias do Catolicismo da Idade Média.

A Teologia do Sofrimento é como uma espécie de holocausto sustentado por falácias que tentem justificar a desgraça humana como um "atalho para se chegar a Deus".

Ficamos perguntando, infelizmente, se, com base na Teologia do Sofrimento, o que faltou aos nossos tiranos foi uma retórica dócil e um aparato de argumentos nobres para justificar as desgraças, sangrentas ou apenas dolorosas, impostas a outrem.

Será que teríamos, por exemplo, que justificar o holocausto nazista, com base na Teologia do Sofrimento, como um "presente dado aos judeus", como se as vítimas não sofressem uma tragédia, mas fossem, por meio dela, entregues aos braços de Deus, como anjos entrando no Paraíso?

Evidentemente, não. E sabemos o quanto o nazismo levou a crueldade humana às últimas consequências.

O que devemos lembrar, porém, é que a Teologia do Sofrimento não é diferente que o nazismo e que o "pensamento" de Chico Xavier, apesar das palavras açucaradas, não é muito diferente de um fascista assumido.

Chico pedia para os sofredores aguentarem calados as suas desgraças. Calados, sem reclamar, "sem queixumes", nas palavras dele, de maneira assumida ou usando, de forma oportunista e hipócrita, os nomes dos mortos.

Não era muito diferente do que o DOI-CODI fazia, quando obrigava seus presos políticos a ficarem calados e aguentarem o sofrimento da prisão e das torturas - uma delas consistia em pôr os pés descaços num balde d'água e nela colocar fios elétricos para provocar choques - , sob pena de morte.

Chico Xavier defendeu a ditadura militar e sonhava com o país onde nasceu dominando o planeta, sob o rótulo de "coração do mundo" e "pátria do Evangelho".

Sabemos que é uma cilada esse negócio de um país comandando o mundo. O próprio nazismo falava algo parecido com a Alemanha. E não é por ser o Brasil o nosso país que vamos defender isso.

Afinal, esse mesmo discurso era feito pelo imperador Constantino quando fundou a Igreja Católica, prometendo paz e fraternidade entre os povos.

Quem imagina que a tal "pátria do Evangelho" não possa revelar futuros Torquemadas e Savonarolas?

O problema é que o "eu" está sempre relacionado com "paz, amor e fraternidade". E o "outro", o obstáculo a ser "exterminado", nem sempre com "conselhos fraternos" e "ensinamentos de misericórdia do Cristo".

Os próprios espíritas brasileiros já sinalizam esse holocausto: falam em "reajustes morais", "resgates espirituais" e "resgates coletivos".

Para atribuir chacinas e massacres como "formas de expiação" a "serem encaradas" pelas vítimas, é um pulo.

E num país que está sob o risco de eleger um fascista para o Palácio do Planalto, um Jair Bolsonaro que é aplaudido de pé por nada a dizer, isso faz muito sentido.

Infelizmente, há um lado sombrio por trás da fachada de paisagens floridas e palavras amorosas oferecida por esse roustanguismo enrustido que se diz "fiel a Kardec", embora o traia oito dias por semana e 25 horas por dia.

E é bom tomarmos muito cuidado com isso. Até porque o discurso dócil e as imagens floridas são boas demais para serem verdade, diante de uma doutrina religiosa cheia de contradições que é o Espiritismo brasileiro.

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